sexta-feira, 11 de outubro de 2019

A Casa dos Meus Avós

A casa da rua Lamenha Lins, 203, no dia da sua inauguração. A casa visível à direita pertencia ao tio-avô Antonio Chalbaud Biscaia.

A  fachada da casa vista de outro ângulo. No canto direito da foto, aparece a ponta do automóvel de meu avô, um Plymouth Special de Luxe, 1947, azul marinho, placas 20-30, apelidado de Buck Jones.  

Das melhores lembranças que guardo, uma delas é a casa da rua Lamenha Lins, número 203, em Curitiba, que pertenceu aos meus saudosos avós, Olguinha e Mario Chalbaud Biscaia. Inaugurada em julho de 1955, foi construída sobre dois lotes, desmembrados de um imóvel maior, que já pertencia à família Biscaia desde meados do século XIX, situado na confluência das ruas Doutor Pedrosa e Lamenha Lins e que foram sendo adquiridos pelos descendentes.

No início do século passado, do lado oposto da Dr. Pedrosa, existia um engenho de mate da família de Ascânio Miró, onde seu filho de mesmo nome construiu sua residência em meados dos anos 1930, há anos substituída por um grande prédio de hotel. Ao longo desta via residiam outros ervateiros, como Joaquim da Silva Sampaio, casado com Maria Carmen Chalbaud, irmã da minha bisavó, que viviam no número 134, numa mansão chamada Villa Maria, também próxima da rua Lamenha Lins, onde hoje se ergue o edifício Vitória Régia.

As antigas casas da rua Dr. Pedrosa, muitas das quais cheguei a conhecer na minha infância, já não mais existem e foram sucedidas por grandes edifícios. Ao tempo em que escrevo este post, naquela quadra da rua Lamenha Lins, restaram apenas os prédios construídos pelos tios avós Narciso e Frederico; a casa dos meus avós; a casa do advogado Arthur Faria de Macedo; e a casa do advogado João Baptista Nogueira e sua esposa Marina Chalbaud Carrano Nogueira, prima irmã de meu avô, a qual é ainda habitada por primos nossos. 

Meus bisavós, Josefina Chalbaud Biscaia e João dos Santos Biscaia, residiam na rua Doutor Pedrosa, 203 (antes número 173) onde antes viveram meu trisavô, que também se chamava João dos Santos Biscaia e minha trisavó Maria José Ribeiro, a Maricota, que ali residiu até falecer em 1921. Esta casa antiga, uma das únicas que ainda remanescem na região, foi construída por meu trisavô em meados do século XIX. Ali nasceu meu bisavô, em 1881; e mais tarde, nasceram meu avô, seus cinco irmãos e uma irmã.

Os irmãos do meu avô, Narciso e Frederico Chalbaud Biscaia construíram um prédio de apartamentos ao lado daquela casa, na esquina com a rua Lamenha Lins, em lote que pertencia à tia deles, irmã do meu bisavô, Maria dos Anjos Biscaia (a tia dos Anjos) que morreu solteira. O irmão mais velho de meu avô, Antonio Chalbaud Biscaia, no começo dos anos 1940, construiu a residência de sua família (número 213) no terreno vizinho ao qual meu avô construiria a sua própria casa.

A casa dos meus avós situava-se entre a praça Rui Barbosa, no centro, e o bairro do Batel. Na prática, tinha três andares, com um grande porão habitável. O projeto e a execução couberam à construtora do engenheiro Julio César de Souza Araújo. A casa exibia os traços elegantes da arquitetura moderna, com detalhes típicos das construções dos anos 1950. Antes da construção dessa casa, meus avós Olga e Mário, haviam residido, primeiro, com os pais de minha avó, na rua conselheiro Barradas, 626 (vide post) e depois, na casa dos pais do meu avô, na rua Dr. Pedrosa, 203. Minha avó contava que um dos momentos mais felizes de sua vida foi quando deitou-se na cama olhando o teto, após os trabalhos mudança e de arrumação da casa nova, que era só deles, pela primeira vez na vida. Na ocasião, ela estava grávida do último filho que nasceu em dezembro daquele ano.

Passei quase toda minha infância e parte da adolescência naquela casa, onde fui morar em fevereiro de 1969, quando viemos de Niterói para Curitiba. Mesmo antes disso, lembro-me da casa, quando viajávamos do Rio para Curitiba de carro, chegando à noitinha, após doze horas de estrada, um cheiro de café vinha da copa, onde meus avós nos esperavam para o jantar. Tinha quartos espaçosos, uma varanda ensolarada e um quintal com arvores frutíferas, com uma pereira, uma ameixeira e, até mesmo, uma árvore de grape-fruit, cuja muda foi presenteada ao meu avô por um amigo americano. Tinha, também, um cafeeiro viçoso, mas, que pouco florescia e dava frutos atrofiados e insípidos, no clima hostil da capital paranaense. Minha avó dedicava-se com cuidado especial ao jardim e suas flores e a uma pequena horta, nos fundos do quintal.                                       
  
Nascida numa propriedade rural em Itaperuçu, nos arredores de Curitiba, filha e neta de imigrantes alemães e italianos - das famílias Klüppel e Soffiatti -, minha avó aprendeu com eles que nada podia ser desperdiçado, sobretudo quando se tratava de alimentos. Fazia conservas e doces de todos os tipos de frutas e legumes, que guardava num armário no porão para consumir ao longo do ano. Da uva, pêssego, ameixa e outras frutas, nada se perdia. Do fruto, fazia geleias, sucos ou conservas. O bagaço, o caroço e o talo viravam adubo na horta. Nesta havia couve, alface, salsinha, cebolinha e outros. Dos legumes fazia conservas e picles. As massas, do espaguete e talharim, ao ravióli e lasanha, todas saíam de uma “máquina” à manivela, atarraxada na extremidade de uma mesa projetada para isso, após amassadas, alisadas e cortadas, com zelo e afinco. Da sua cozinha, vinham aromas que ainda sinto em minhas narinas.      


Aspectos da sala de jantar, da escada e do bar
Lembro-me do perfume e das cores interiores da casa. Das portas com relevos retangulares e da porta de correr da sala de visitas, com vidros quadrados bisotados, sempre trancada e que imitei, depois, na minha própria casa. Do cheiro de cerejeira dos móveis da sala de jantar, da cristaleira, da mesa maciça, com cadeiras cinza de encostos vazados e pernas-palito, que minha avó orgulhava-se de que foram feitos sob medida na renomada Fábrica de Móveis Paciornik, situada ali próxima, na rua Dr. Pedrosa, na mesma quadra da casa. Embaixo da escada, havia um armário embutido, misterioso para mim, onde meu avô guardava bebidas, cigarros, chapéus, sobretudos e as estranhas galochas, infalíveis em Curitiba.

Os sons da campainha da rua, das campainhas internas de serviço e do telefone de baquelite negro em cima de uma mesinha ao pé da escada, todas com seus toques característicos, ainda ressoam nos meus ouvidos. Havia rádios, com design streamline, do pós-guerra e da década de 1950, em baquelite e galalite, além de um televisor Empire com seu gabinete em madeira de lei, com portas para proteger a tela, o qual meu avô comprou na mesma semana da inauguração da transmissão de programas de televisão em Curitiba, em 1960, pela TV Paranaense - Canal 12.   

Do fundo da minha memória, o que resta da velha casa dos meus avós são as vozes, os odores, os sons, as cores e os seus próprios vultos reluzentes naquele lar em que foram felizes para sempre e onde passei parte importante de minha vida. Quando deixei a casa para morar em um apartamento em julho de 1976, num dia claro de sol aquecendo o úmido inverno curitibano, o que provocava um fenômeno de condensação que fazia as paredes "suarem" e escorrerem, minha avó me disse que "eram as lágrimas da casa, que chorava a nossa partida". 

Por vezes ali retorno e vago pelos seus ambientes em visões diáfanas, nos meus sonhos mais profundos. Embora ainda pertença à nossa família, destinada a outros fins e muito desfigurada de sua aparência original, nunca mais tive a coragem de revisitar a casa da minha infância. 

domingo, 12 de maio de 2019

Voar Com Asas Brasileiras

Desenho de propaganda oficial sobre o Muniz M-9
Aeronave Muniz M-9 fabricada no Brasil em 1939


Há oitenta anos, no dia 25 de abril de 1939, na ilha do Engenho, situada na baía da Guanabara, a Fábrica Brasileira de Aviões, sucessora da Companhia Nacional de Navegação Aérea (a primeira fábrica de aviões do Brasil), entregava ao Exército as cinco primeiras unidades do modelo M-9, que vinha com um motor mais potente e alguns aperfeiçoamentos técnicos em relação ao modelo anterior, o M-7, o primeiro avião fabricado em série no Brasil, com muitos componentes nacionais. O novo modelo era equipado com um motor britânico De Havilland Gipsy, de 200 HP, com seis cilindros em linha, refrigerado a ar. O avião foi idealizado pelo oficial da aviação militar, Antonio Guedes Muniz. O vôo inaugural das aeronaves, inclusive com manobras aéreas, foi realizado por um grupo de oficiais aviadores do Exército brasileiro, entre os quais meu avô, na ocasião primeiro tenente aviador Arthur Carlos Peralta. Acima estão fotos do modelo e a notícia publicada no jornal Correio da Manhã.

Esses aviões e a empresa que os fabricava foram precursores da produção nacional de aeronaves que, décadas mais tarde, com o surgimento do Instituto Tecnológico de Aeronáutica e da Embraer, tornariam a engenharia aeronáutica brasileira reconhecida mundialmente e os aviões fabricados no Brasil, com qualidade e excelência respeitada internacionalmente, voariam em países de todos os continentes.     

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Mario Chalbaud Biscaia e o Club Atlhetico Paranaense

Novembro de 1947: Ofício do presidente João Alfredo Silva convocando Mário Biscaia para assumir a presidência interina do CAP. 

O Dia - 23/12/1931

Diário da Tarde - 14/01/1933


O Dia - 28/12/1945: A manchete das vésperas da conquista do campeonato de 1945 pelo CAP
1945

1947

1948

Homenagem da Associação dos Cronistas Esportivos do Paraná (ACEP) aos principais dirigentes do futebol paranaense. (Diário da Tarde - 27/01/1949)

Nestes tempos em que os modismos e os marqueteiros trazem de volta as velhas grafias de nomes de times de futebol e, bem assim, camisas antigas entre outros badulaques, ditos vintage, resolvi republicar este post que mostra um pequeno flash back da trajetória do meu avô Mario Chalbaud Biscaia no seio do seu time favorito. O Club Athletico Paranaense, nosso velho e querido CAP, em fins do ano de 2018, às vésperas da notável conquista do seu primeiro título internacional e continental, a Copa Sul Americana, mudou seu escudo e voltou a usar o nome que tinha quando meu avô iniciou sua carreira como jogador amador e como dirigente do clube da Baixada do Rio Água Verde, na rua Buenos Aires, há mais de 85 anos.

Sem dar palpite, nem entrar no mérito das conveniências mercadológicas dessas mudanças, de fato, nenhuma novidade há nesta versão do nome do time, lembrando o aforismo latino, sempre estampado nas reedições de livros antigos ou esgotados: non nova, sed nove; ou seja: nada de novo, mas, de novo, novamente. Como se pode observar nos recortes de jornal acima, do início da década de 1930, a ortografia exigia o uso do "th" e a palavra clube ainda era um estrangeirismo escrito com "b" mudo. Seu arquirrival, o Coritiba FootBall Club nunca abandonou a grafia original do nome com o qual foi fundado no início do século XX, quando Curitiba se escrevia Coritiba.

Meu avô, Mario Chalbaud Biscaia, nutria algumas grandes paixões na sua vida, além de sua família: duas delas eram o futebol e o Club Atlhetico Paranaense, o seu sempre glorioso Furacão. A outra veio mais tarde: a Associação Paranaense de Reabilitação (APR) da qual foi um dos fundadores, na década de 1950, tendo sido um associado incansável e benemérito. 

Em novembro de 1947, Mário Biscaia assumiu a presidência do Atlético Paranaense por alguns meses, em decorrência do impedimento temporário do presidente João Alfredo Silva. Seria a primeira de muitas interinidades como vice-presidente, entre 1947 e 1949. Nesta época, a grafia do nome do CAP já havia se modernizado com a nova ortografia em vigor, como se pode notar no papel timbrado do clube, na foto inicial. 

Mário Biscaia ocupou cargos na diretoria do Atlético, em praticamente todas as gestões do clube entre 1931 e 1968, incluindo os tempos do Atlhetico médio, uma espécie de departamento juvenil da agremiação. Na diretoria do CAP foi secretário-geral e, por diversas gestões, foi o incansável tesoureiro do clube, em épocas de grandes dificuldades financeiras. Foi ainda vice-presidente e presidente interino.

Ele dirigiu o departamento de futebol profissional do CAP, que hoje corresponde ao cargo de diretor de futebol, durante os campeonatos vitoriosos de 1945 e de 1949, quando o clube  recebeu o título de Furacão, apelido pelo qual é conhecido em todo  Brasil.

O livro Atletiba, A Paixão das Multidões, escrito por dois conhecidos e respeitados jornalistas esportivos do Paraná, Vinicius Coelho e Carneiro Neto, conta a história da conquista do emblemático título de 1949, cuja preparação começara em 1948, na gestão do presidente João Alfredo Silva, na qual meu avô foi vice-presidente e quando aconteceram várias contratações dos melhores jogadores da época. E, continua o livro: "No ano seguinte, tendo Itaciano Marcondes na presidência e Mário Biscaia como diretor de futebol, o Atlético fez por merecer o título de 'O Furacão'." (grifei) *

Em 24/06/1999, dia da inauguração da Arena da Baixada (que precedeu e deu origem ao atual estádio magnífico, construído para a Copa do Mundo FIFA de 2014 no Brasil) a coincidência do destino me fez sentar na cadeira ao lado da filha do presidente Itaciano Marcondes. Ali, no mesmo local, 50 anos depois da conquista do título de Furacão, estavam sentados lado a lado na arquibancada, a filha e o neto de dois homens que fizeram parte da história gloriosa do CAP e construíram os alicerces dos novos tempos. 

A notória indiferença de sucessivas gestões do clube nas últimas décadas em relação à memória do CAP, que alguns gostariam simplesmente de apagar da história, relegou ao esquecimento muitos daqueles obstinados e abnegados dirigentes do passado, que edificaram os pilares dessa agremiação para as conquistas do presente.

Qualquer que seja o modo que seu nome seja escrito, as pessoas, os dirigentes, a grafia e os modismos sempre passam, mas, a paixão pelo velho Furacão permanece intacta e para sempre escrita da mesma forma. E, para terminar, como dizia meu avô: "Futebol é bola na rede. O resto é conversa fiada para boi dormir".

*Atletiba, A Paixão das Multidões; Vinicius Coelho e Carneiro Neto; editora Fundação Cultural de Curitiba; 1994; página  67.